Lembro-me ainda do horror que eu tinha do
naufrágio do eu...
Desse pequeno pseudo-eu periférico,
físico-mental, que eu considerava como meu verdadeiro Eu, porque ignorava ainda
o outro EU, central, divino, eterno, o reino de Deus dentro de mim...
Que seria de mim se esse pequeno eu
naufragasse?
Que valor teria ainda a minha vida?
Uma vida sem vida, sem encantos — vida
descolorida, vida murcha, vida morta...
Por isto, cerquei de uma vasta floresta de
"meus" o meu querido "eu", para que o protegessem e defendessem eficazmente de
qualquer perigo de ataque e destruição.
Fortifiquei o baluarte central do eu com mil
fortins e trincheiras de "meus", de diversos tamanhos e feitios, bens e
propriedades materiais de toda espécie...
E, para maior segurança, mandei registrar no
cartório os documentos que me declaravam dono e possuidor único desses bens
periféricos que cercavam o bem central; e sobre estampilhas esguias e viscolores
tracei a data e o meu nome por extenso, com firma reconhecida pela autoridade
pública...
Depois disto, voltei para casa, perfeitamente
tranquilo, ciente de que já não havia poder algum sobre a terra que me pudesse
espoliar desses preciosos "meus", defensores do meu queridíssimo eu...
Senti-me seguro e tranquilo como os rochedos do
Himalaia...
Coloquei a mão pesadamente sobre esse símbolo
dos bens materiais em derredor e proclamei ao mundo, com voz grave e retumbante:
Saibam todos que isto aqui é meu, só meu, e de mais ninguém!...
E fui repousar, tranquilo e sereno, no interior
do baluarte do eu rigidamente fortificado com esse numerosos fortins de "meus"
de diversos tamanhos e feitios...
Isto foi ontem, anteontem, anos atrás...
E eu não tinha a menor idéia da comédia
ridícula que desempenhava com essas "previdências" humanas, porque os meus
companheiros de comédia faziam o mesmo, e a insensatez de muitos ou de todos
sempre parece transformar em "sensatez" as nossas maiores
"insensatezas"...
Um dia, porém, acordei do longo letargo — e me
surpreendi prisioneiro...
Prisioneiro dentro de minha própria
fortaleza...
Verifiquei que não era nenhum possuidor, ma sim
um possuído...
Possuído e possesso de muitos bens...
E esses bens eram meu grande mal...
Vi que esses "meus" em derredor escravizavam o
eu, que os carcereiros de fora davam ordens ao encarcerado de dentro...
A chave da prisão estava do lado de fora, nas
mãos deles...
Horrorizado, bradei por socorro...
Mas não havia redentor que me redimisse da
irredenção do eu...
Também, como poderia o eu redimir-me,
redimir-se, se ele mesmo era o escravo?...
escravo não redime escravo — não há
ego-redenção...
Não pode o preso descerrar de dentro a prisão
em que vive e agoniza — só poderia abrir a porta do cárcere alguém que viesse de
fora, alguém que fosse livre...
Só Deus sabe quanto sofri nessa longa noite de
agonias anônimas, de torturas íntimas, que nem sequer atingiram os ouvidos dos
meus melhores amigos e confidentes...
Há coisas que não podemos dizer a ninguém,
porque ninguém as compreenderiam — e muitíssimos até descompreenderiam essas
coisas íntimas...
Assim, tive eu de carregar a minha cruz sem
nenhum Cirineu, rumo ao topo do Gólgota...
Quem me libertaria desses "meus", tiranos, a
escravizar o eu?
Depois de muito sofrer e muito lutar e muito
clamar e muito chorar e muito orar — entreouvi uma voz longínqua, como que vinda
dos últimos confins do Além...
E essa voz longínqua segredava-me, com
silenciosos trovões e trovejante silêncio: Naufraga — e vive!
Estupefato, escutei essa voz do longínquo Além,
e percebi que vinha do propínquo Aquém — do Além de dentro de mim mesmo, das
ignotas profundezas de minha alma divina, da luz invisível do meu Cristo
interno...
Fitei os olhos nessa luminosa escuridão do Além
de dentro...
E as trevas foram-se adelgaçando aos poucos,
enquanto eu orava: Deus do universo de dentro e de fora! Faze-me conhecer-Te,
faze-me conhecer-me!
Foi amanhecendo promissora alvorada...
Extasiado, vi-me face a face com o Cristo
eterno...
O Cristo do universo do Aquém — o Cristo do
universo do Além...
O eterno Logos que, no princípio estava com
Deus, que era Deus, que é a Vida, que é a Luz que ilumina a todo homem que vem a
este mundo...
Vi — não como se vê com os olhos...
Compreendi — não como se compreende com o
intelecto...
Vi, compreendi, como se vê e compreende com a
alma, com o Emmanuel, com o Cristo interno, que é o Cristo eterno que sempre de
novo se faz carne e habita em nós...
E, nesse momento eterno, cheguei a saber mais
da realidade do que havia procurado saber em meio século de esforços
individuais...
Tateando como um cego, fui voltando aos poucos
às baixadas terrestres, sujeitas a tempo e espaço...
Sabia que, embora cidadão do Infinito, tinha de
viver ainda, como imigrante temporário, neste plano finito — porque tinha uma
grande missão a cumprir...
Era embaixador do Cristo, arauto do reino de
Deus entre meus semelhantes...
Olhei em derredor — e vi que todos os fortins
dos "meus" de antanho haviam desabado em ruínas — não ficara pedra sobre
pedra...
A derrocada do baluarte do pseudo-eu acarretara
a rendição incondicional de todas as fortificações circunvizinhas, daquilo que
eu chamava o "meu".
Compreendi a lógica do fato — também, por que
ainda manter trincheiras externas se a fortaleza interna já não existia?
Naufragara o falso eu — e lá se foram os falsos
"meus"...
O estreito arroio do "eu" desaguara no vasto
oceano do "NÓS" — e todas as barulhentas ondas dos efêmeros "meus" afogaram-se
no seio silencioso do eterno "NOSSO"...
A expansão daquilo que eu SOU produz
necessariamente a universalização daquilo que eu TENHO...
Nada mais tenho como meu desde que
deixei de ser este pequeno eu...
A diluição do pequeno eu humano no
grande TU divino gera a espontânea distribuição do meu individual
ao nosso universal...
Depois desse naufrágio mortífero, que me faz
entrar na plenitude da vida, sinto-me tão indizivelmente livre e feliz que tenho
irresistível vontade de abraçar o mundo inteiro, e de dar a cada ser um pouco da
minha felicidade — pouco ou muito, quanto ele puder abranger, porque sei que
esse tesouro divino é inexaurível...
Olhei em derredor, na exultante consciência da
gloriosa liberdade dos filhos de Deus — e verifiquei com surpresa que todos os
"meus", esses "ex-meus", que eu abandonara com o naufrágio do pseudo-eu, esse
"ex-eu", corriam atrás de mim e queriam ser meus...
Não! — bradei — não vos quero mais, tiranos e
carcereiros de outrora! Retirai-vos de mim!
Eles, porém, esses "meus" de ontem, não se
retiravam, mas replicaram calmamente: Já não somos tiranos e carcereiros teus!
Somos teus amigos e aliados! Quem se libertou do falso eu pode sem perigo
possuir o que cerca esse eu! Já não queremos possuir-te, glorioso filho de Deus,
queremos ser possuídos por ti! Leva-nos contigo a Deus, teu Deus e nosso Deus,
tu, que és nosso irmão mais velho e vais em linha reta a Deus, leva pela mão a
nós, teus irmãos menores!...
Assim diziam e suplicavam os grandes e pequenos
"meus" de ontem, toda essa numerosa família de bens terrenos que eu
abandonara...
E eu os acolhi como servos e amigos, e eles me
serviram e servem, dócil e jubilosamente como bons aliados na jornada comum rumo
a Deus...
E, certo dia, defrontamos com um homem
estranho, que disse: "Procurai primeiro o reino de Deus e sua justiça — e
todas as outras coisas vos serão dadas de acréscimo"...
E segui avante, após o grande naufrágio
voluntário — na plenitude da vida...
Huberto Rohden
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