sábado, 5 de maio de 2012

Naufraga — e Vive!




Lembro-me ainda do horror que eu tinha do naufrágio do eu...



Desse pequeno pseudo-eu periférico, físico-mental, que eu considerava como meu verdadeiro Eu, porque ignorava ainda o outro EU, central, divino, eterno, o reino de Deus dentro de mim...



Que seria de mim se esse pequeno eu naufragasse?



Que valor teria ainda a minha vida?



Uma vida sem vida, sem encantos — vida descolorida, vida murcha, vida morta...



Por isto, cerquei de uma vasta floresta de "meus" o meu querido "eu", para que o protegessem e defendessem eficazmente de qualquer perigo de ataque e destruição.



Fortifiquei o baluarte central do eu com mil fortins e trincheiras de "meus", de diversos tamanhos e feitios, bens e propriedades materiais de toda espécie...



E, para maior segurança, mandei registrar no cartório os documentos que me declaravam dono e possuidor único desses bens periféricos que cercavam o bem central; e sobre estampilhas esguias e viscolores tracei a data e o meu nome por extenso, com firma reconhecida pela autoridade pública...



Depois disto, voltei para casa, perfeitamente tranquilo, ciente de que já não havia poder algum sobre a terra que me pudesse espoliar desses preciosos "meus", defensores do meu queridíssimo eu...



Senti-me seguro e tranquilo como os rochedos do Himalaia...



Coloquei a mão pesadamente sobre esse símbolo dos bens materiais em derredor e proclamei ao mundo, com voz grave e retumbante: Saibam todos que isto aqui é meu, só meu, e de mais ninguém!...



E fui repousar, tranquilo e sereno, no interior do baluarte do eu rigidamente fortificado com esse numerosos fortins de "meus" de diversos tamanhos e feitios...



Isto foi ontem, anteontem, anos atrás...



E eu não tinha a menor idéia da comédia ridícula que desempenhava com essas "previdências" humanas, porque os meus companheiros de comédia faziam o mesmo, e a insensatez de muitos ou de todos sempre parece transformar em "sensatez" as nossas maiores "insensatezas"...



Um dia, porém, acordei do longo letargo — e me surpreendi prisioneiro...



Prisioneiro dentro de minha própria fortaleza...



Verifiquei que não era nenhum possuidor, ma sim um possuído...



Possuído e possesso de muitos bens...



E esses bens eram meu grande mal...



Vi que esses "meus" em derredor escravizavam o eu, que os carcereiros de fora davam ordens ao encarcerado de dentro...



A chave da prisão estava do lado de fora, nas mãos deles...



Horrorizado, bradei por socorro...



Mas não havia redentor que me redimisse da irredenção do eu...



Também, como poderia o eu redimir-me, redimir-se, se ele mesmo era o escravo?...



escravo não redime escravo — não há ego-redenção...



Não pode o preso descerrar de dentro a prisão em que vive e agoniza — só poderia abrir a porta do cárcere alguém que viesse de fora, alguém que fosse livre...



Só Deus sabe quanto sofri nessa longa noite de agonias anônimas, de torturas íntimas, que nem sequer atingiram os ouvidos dos meus melhores amigos e confidentes...



Há coisas que não podemos dizer a ninguém, porque ninguém as compreenderiam — e muitíssimos até descompreenderiam essas coisas íntimas...



Assim, tive eu de carregar a minha cruz sem nenhum Cirineu, rumo ao topo do Gólgota...



Quem me libertaria desses "meus", tiranos, a escravizar o eu?



Depois de muito sofrer e muito lutar e muito clamar e muito chorar e muito orar — entreouvi uma voz longínqua, como que vinda dos últimos confins do Além...



E essa voz longínqua segredava-me, com silenciosos trovões e trovejante silêncio: Naufraga — e vive!



Estupefato, escutei essa voz do longínquo Além, e percebi que vinha do propínquo Aquém — do Além de dentro de mim mesmo, das ignotas profundezas de minha alma divina, da luz invisível do meu Cristo interno...



Fitei os olhos nessa luminosa escuridão do Além de dentro...



E as trevas foram-se adelgaçando aos poucos, enquanto eu orava: Deus do universo de dentro e de fora! Faze-me conhecer-Te, faze-me conhecer-me!



Foi amanhecendo promissora alvorada...



Extasiado, vi-me face a face com o Cristo eterno...



O Cristo do universo do Aquém — o Cristo do universo do Além...



O eterno Logos que, no princípio estava com Deus, que era Deus, que é a Vida, que é a Luz que ilumina a todo homem que vem a este mundo...



Vi — não como se vê com os olhos...



Compreendi — não como se compreende com o intelecto...



Vi, compreendi, como se vê e compreende com a alma, com o Emmanuel, com o Cristo interno, que é o Cristo eterno que sempre de novo se faz carne e habita em nós...



E, nesse momento eterno, cheguei a saber mais da realidade do que havia procurado saber em meio século de esforços individuais...



Tateando como um cego, fui voltando aos poucos às baixadas terrestres, sujeitas a tempo e espaço...



Sabia que, embora cidadão do Infinito, tinha de viver ainda, como imigrante temporário, neste plano finito — porque tinha uma grande missão a cumprir...



Era embaixador do Cristo, arauto do reino de Deus entre meus semelhantes...



Olhei em derredor — e vi que todos os fortins dos "meus" de antanho haviam desabado em ruínas — não ficara pedra sobre pedra...



A derrocada do baluarte do pseudo-eu acarretara a rendição incondicional de todas as fortificações circunvizinhas, daquilo que eu chamava o "meu".



Compreendi a lógica do fato — também, por que ainda manter trincheiras externas se a fortaleza interna já não existia?



Naufragara o falso eu — e lá se foram os falsos "meus"...



O estreito arroio do "eu" desaguara no vasto oceano do "NÓS" — e todas as barulhentas ondas dos efêmeros "meus" afogaram-se no seio silencioso do eterno "NOSSO"...



A expansão daquilo que eu SOU produz necessariamente a universalização daquilo que eu TENHO...



Nada mais tenho como meu desde que deixei de ser este pequeno eu...



A diluição do pequeno eu humano no grande TU divino gera a espontânea distribuição do meu individual ao nosso universal...



Depois desse naufrágio mortífero, que me faz entrar na plenitude da vida, sinto-me tão indizivelmente livre e feliz que tenho irresistível vontade de abraçar o mundo inteiro, e de dar a cada ser um pouco da minha felicidade — pouco ou muito, quanto ele puder abranger, porque sei que esse tesouro divino é inexaurível...



Olhei em derredor, na exultante consciência da gloriosa liberdade dos filhos de Deus — e verifiquei com surpresa que todos os "meus", esses "ex-meus", que eu abandonara com o naufrágio do pseudo-eu, esse "ex-eu", corriam atrás de mim e queriam ser meus...



Não! — bradei — não vos quero mais, tiranos e carcereiros de outrora! Retirai-vos de mim!



Eles, porém, esses "meus" de ontem, não se retiravam, mas replicaram calmamente: Já não somos tiranos e carcereiros teus! Somos teus amigos e aliados! Quem se libertou do falso eu pode sem perigo possuir o que cerca esse eu! Já não queremos possuir-te, glorioso filho de Deus, queremos ser possuídos por ti! Leva-nos contigo a Deus, teu Deus e nosso Deus, tu, que és nosso irmão mais velho e vais em linha reta a Deus, leva pela mão a nós, teus irmãos menores!...



Assim diziam e suplicavam os grandes e pequenos "meus" de ontem, toda essa numerosa família de bens terrenos que eu abandonara...



E eu os acolhi como servos e amigos, e eles me serviram e servem, dócil e jubilosamente como bons aliados na jornada comum rumo a Deus...



E, certo dia, defrontamos com um homem estranho, que disse: "Procurai primeiro o reino de Deus e sua justiça — e todas as outras coisas vos serão dadas de acréscimo"...



E segui avante, após o grande naufrágio voluntário — na plenitude da vida...



Huberto Rohden

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