A diferença entre o coletivo e o individual
Krishnamurti - 28 de agosto de 1955 – Ojai (Califórnia)
U.S.A.
Do livro: Realização sem esforço -
ICK
Muito difícil, segundo penso, distinguir a diferença
entre o coletivo e o individual, e descobrir onde termina o coletivo e começa a
individualidade; e, também, perceber o significado do coletivo e descobrir se é
possível ficar-se livre do coletivo e promover a integração do indivíduo. Não
sei se já pensastes, ainda que ligeiramente, a respeito deste problema, que me
parece ser um dos problemas fundamentais do mundo, principalmente na época
atual, em que tanto se encarece a importância do coletivo. Não só nos países
comunistas, mas também no mundo capitalista, onde, se estão criando “Estados de
Bem-Estar”, como é o caso da Inglaterra, se está atribuindo significação cada
vez maior ao coletivo. Criam-se fazendas coletivas e cooperativas de toda ordem,
e, ao considerarmos tudo isso, ficamos a perguntar-nos qual é o lugar que o
indivíduo irá ocupar nesse quadro e se, afinal, o indivíduo existe
mesmo.
Sois um indivíduo? Tendes um certo nome, um depósito
bancário particular, casa própria, certas características fisionômicas e
psicológicas, mas sois realmente um indivíduo? Acho de muita importância
considerar bem esta questão, uma vez que só quando existe a incorruptibilidade
do indivíduo — de que tratarei mais adiante — há a possibilidade de surgir
alguma coisa totalmente nova. Isso significa que cada um precisa descobrir por
si mesmo onde termina o coletivo, se ele de fato termina, e onde começa a
individualidade — o que suscita todo o problema do tempo. Este assunto é muito
complexo e, por ser complexo, precisamos aplicar-nos a ele de maneira simples,
direta, sem dar voltas ao redor dele; e, se me é permitido, vou examiná-lo nesta
manhã.
Peço licença para sugerir-vos observeis o vosso próprio
pensar, enquanto falo, e que não vos limiteis a escutar meramente, aprovando ou
desaprovando o que se está dizendo. Se escutais apenas para concordar ou
discordar, com uma superficial compreensão intelectual, então esta palestra e
todas as anteriores, serão completamente inúteis. Mas, se sois capaz de observar
o funcionamento de vossa própria mente enquanto o vou descrevendo, esse próprio
observar produzirá uma ação extraordinária, que não é imposta nem
forçada.
Acho de muita importância descubramos cada um de nós,
onde termina o coletivo e começa o individual. Ou o nosso pensar — conquanto
modificado pelo temperamento pessoal, pelas idiossincrasias de cada um — será
totalmente coletivo? O “coletivo” é o conglomerado de condicionamentos vários,
nascidos das ações e reações sociais, das influências educativas, das crenças,
dogmas e preceitos religiosos, etc. Todo esse processo heterogêneo constitui o
coletivo, e se examinardes, se olhardes a vós mesmos, vereis que tudo o que
pensais, vossas crenças ou descrenças, vossos ideais ou oposição aos ideais,
vossos esforços, vossa inveja, vossos impulsos, vosso senso de responsabilidade
social — vereis que tudo isso é resultado do coletivo. Se sois pacifista, vosso
pacifismo é o resultado de um certo condicionamento.
Assim, se examinamos a nós mesmos, admiramo-nos de ver
quanto estamos integrados no coletivo. No mundo ocidental, onde o cristianismo
domina há tantos séculos, sois criados no condicionamento respectivo. Sois
educados como católicos ou protestantes, com todas as divisões do
protestantismo. E tendo sido educados dessa maneira, crendo em absurdos de toda
ordem — no inferno, na punição eterna, no purgatório, no único Salvador, no
pecado original e outras coisas mais — estais condicionados por essa educação, e
ainda que vos afasteis dessas coisas, no vosso inconsciente permanecerá sempre
um resíduo desse condicionamento. Tendes sempre o medo do inferno, ou de não
crerdes num certo Salvador, etc.
Assim, se consideramos bem esse extraordinário fenômeno,
parecerá um tanto absurdo uma pessoa dizer-se “um indivíduo”. Podeis ter gostos
individuais, ter vosso nome próprio, e uma fisionomia completamente diferente da
de outro homem, mas o processo do vosso pensar é, por inteiro, um resultado do
coletivo. Os instintos raciais, as tradições, os valores morais, a
extraordinária devoção ao sucesso, a ambição de poder, de posição, de riquezas,
geradora de violência — não há dúvida de que tudo isso é resultado do coletivo,
uma herança secular. E é possível do meio desse conglomerado, extrair o
indivíduo? Ou é impossível de todo? Se levamos a sério esta
questão de promover a transformação radical, uma revolução, não é
importantíssimo consideremos este ponto fundamental? Porque, só ao homem que é
um indivíduo, no sentido em que estou empregando a palavra, ao homem não
contaminado pelo coletivo, ao homem que está só
— não isolado, mas completamente só, interiormente — só a esse homem a Realidade
pode manifestar-se.
Expressando-o diferentemente: Iniciamos as nossas vidas
com suposições, postulados; que há ou que não há Deus, que há inferno e céu, que
é necessário um certo padrão de relações, uma determinada moral, que deve
prevalecer uma determinada ideologia, etc. Com estas suposições, que são produto
do coletivo, criamos uma estrutura que chamamos educação, que chamamos religião,
e fundamos uma sociedade em que o individualismo brutal prevalece sem freios, ou
é mantido sob controle. Esta sociedade está baseada na suposição de que é
necessária e inevitável a competição, de que é necessária a inveja, a ambição.
Mas, é possível não construirmos sobre suposições de qualquer natureza, mas construirmos ao mesmo tempo em que estamos
investigando e descobrindo? Se aceitamos o descobrimento feito por outro, nesse
caso entramos imediatamente no terreno do coletivo, que é o terreno da
autoridade; mas se cada um de nós começar livre de suposições e postulados,
então vós e eu edificaremos uma sociedade toda diferente, e esta me parece uma
das questões mais importantes da época atual.
Ora, percebendo esse processo na sua inteireza — no nível
consciente e bem assim no inconsciente, já que o inconsciente é também resíduo
do coletivo — é possível extrairmos daí o indivíduo? Pode-se pensar, se se
despojar o pensar da influência coletiva? Se fostes educado como católico,
metodista, batista, ou seja o que for, vosso pensar é o resultado do coletivo,
consciente ou inconsciente; vosso pensar é resultado da memória, e a memória é o
coletivo. Isto é um tanto complexo e devemos examiná-lo com vagar, sem concordar
nem discordar; o que queremos é descobrir.
Quando se diz que há liberdade de pensamento, isso me
parece um absurdo completo, porque, do modo como vós e eu pensamos, o pensar é
reação da memória, e a memória produto do coletivo, sendo esse coletivo cristão,
hinduísta, etc. Nessas condições, nunca haverá liberdade de pensamento enquanto
o pensar estiver baseado na memória. Vede, por favor, que isto não é mera
lógica. Não o rejeiteis, dizendo: “Ora, isto é puro raciocínio lógico”. Mas não
é. Será lógico por acaso, mas eu estou descrevendo um fato. Enquanto o
pensamento for reação da memória, que é resíduo do coletivo, a mente terá de
funcionar na esfera do tempo, sendo o tempo a continuação da memória de ontem,
hoje e amanhã. Para a mente em tais condições haverá sempre a morte, a
corruptibilidade e o medo, e por mais que busque algo incorruptível, fora do
tempo, nunca o achará, porque o seu pensamento é sempre resultado do tempo, da
memória, do coletivo.
Nessas condições, pode uma mente cujo pensamento resulta
do coletivo, cujo pensamento
é
o coletivo, desembaraçar-se do coletivo? Quer dizer: Pode a mente conhecer o
atemporal, o incorruptível, o que existe sozinho, que não esteja sob a
influência de nenhuma sociedade? Não afirmeis nem negueis, não digais “já tive
experiência disso” — porque isso nada significa, em se tratando de questão tão
complexa como esta. Pode-se ver que há sempre corrupção, quando a mente funciona
no coletivo. Poderá ela inventar um código de moral melhor, promover reformas
sociais, mas tudo estará sob a influência coletiva e, portanto, será
corruptível. Por certo para descobrir se há um estado incorruptível, atemporal,
imortal, a mente tem de estar totalmente livre do coletivo. E ao dar-se a sua
completa libertação do coletivo, o indivíduo será anticoletivo? Ou não será
anticoletivo, mas, sim, funcionará num plano totalmente diferente, que o
coletivo poderá repelir? Estais seguindo?
O
problema é: Pode a mente ultrapassar o coletivo? Se nenhuma possibilidade existe
de ultrapassarmos o coletivo, então temos de contentar-nos com adornar o
coletivo, abrir janelas na prisão, instalar uma iluminação melhor, mais
banheiros, etc. É nisto que o mundo está interessado, e é a isso que ele chama
progresso, condições de vida melhores. Não sou contra o melhoramento das
condições de vida, pois seria uma estupidez isso, principalmente por parte de
quem vem da Índia, onde se passa fome como em nenhuma outra parte do mundo,
excetuada talvez a China, onde tanta gente só toma meia refeição por dia, e
mesmo nenhuma, onde há miséria, sofrimento, doença, e a incapacidade para a
revolta, já que o povo está a morrer de fome. Assim, pois, nenhum homem
inteligente pode ser contra a instauração de melhores condições de vida; mas se
é só isso que interessa, então a vida será puramente materialista. E neste caso
o sofrimento é inevitável; neste caso estará muito bem que haja ambição,
competição, antagonismo, impiedosa eficiência, guerras... toda esta estrutura do
mundo moderno, com suas esporádicas reformas sociais. Mas se começarmos a
investigar o problema do sofrimento — o sofrimento representado pela morte, pela
frustração, pela treva da ignorância — então cumpre examinar essa estrutura, no
seu todo, e não apenas certas partes dela, como a manutenção de exércitos, as
formas de governo, etc., visando a reformas parciais. Ou aceitamos esta
sociedade toda inteira, ou a rejeitamos completamente — “rejeitar”, não no
sentido de evitá-la, mas de descobrir a sua significação.
Assim, pois, se a mente não achar possibilidade de
libertar-se desta prisão do coletivo, então o que pode fazer é só voltar atrás e
reformar a prisão. Mas eu acho que tal possibilidade existe, pois seria estúpido demais ficarmos a lutar eternamente
dentro da prisão. E como achará a mente um meio de se libertar dessa massa
heterogênea de valores e contradições, ambições e impulsos? Enquanto isso não
acontecer, não haveráindividualidade. Podeis denominar-vos um indivíduo, dizer que tendes uma
alma, um “eu” superior, mas essas coisas são invenções da mente, que faz parte
do coletivo.
Veja-se o que está acontecendo no mundo. Um novo grupo do
“coletivo” está a negar a alma, a imortalidade, a permanência, a Jesus como
único Salvador, etc. Em vista de todo esse conglomerado de asserções e
contra-asserções, surge a inevitável pergunta: É possível a mente libertar- se
dele? Isto é, é possível ficarmos libertados do tempo, do tempo como memória,
memória esta que é produto de determinada cultura, civilização ou
condicionamento? Pode a mente ficar livre dessa memória? Não me estou referindo
à memória da técnica de construir uma ponte, da estrutura do átomo, do caminho
de casa; esta é a memória “fatual”, e sem ela estaríamos dementes ou doentes de
amnésia. Mas pode a mente existir livre da memória psicológica? Pode, sem dúvida, mas só quando não está a buscar
segurança. Afinal de contas, como disse ontem, enquanto a mente busca a
segurança, seja numa conta bancária, seja numa religião ou em vários gêneros de
atividades sociais e de relações, tem de haver violência, homem que possui muito
cria a violência; mas o homem que percebe a futilidade de ter muito e se torna
eremita, esse também cria violência, porque está buscando a segurança, não no
mundo, mas em idéias.
O
problema é então este: Pode a mente ficar livre da memória, — não da memória
relativa ao conhecimento de fatos, mas da memória coletiva, amontoada através de
séculos de crença? Se fizerdes a vós mesmo esta pergunta, com toda a atenção, e
não esperardes que eu vos responda — porque não há resposta — vereis então que,
enquanto a mente está buscando a segurança, sob qualquer forma, pertenceis ao coletivo, a uma memória
multissecular. E o não buscar a segurança é sumamente difícil, visto que podemos
rejeitar o coletivo, mas constituir um novo coletivo, com nossas próprias
experiências. Compreendeis? Posso rejeitar a sociedade com toda a sua corrupção,
sua ambição, sua avidez e competição, no plano coletivo; mas, depois de
rejeitá-la, tenho experiências e cada experiência deixa o seu resíduo. Estes
resíduos se tornam também o coletivo, já que constituem uma
coleção. Aí encontro a minha segurança, que transmito a meu
filho, a meu vizinho, de modo que, mais uma vez, está criado o coletivo, num
padrão diferente.
É
possível a mente ficar livre da memória do coletivo? Quer dizer, ficar livre da
inveja, da competição, da ambição, da dependência, da perene busca do permanente
como meio de segurança. Pois só quando há esta liberdade, pode existir o
indivíduo. E nela se encontra um estado de espírito, um “estado de ser”
completamente diferente. Não há mais possibilidade de corrupção, não há mais o
tempo, e para essa mente, que pode ser chamada individual, ou outro nome
qualquer, a Realidade surge na existência. Não se pode buscar a Realidade; se o
fizerdes, ela se tornará vossa segurança e, portanto será totalmente falsa, sem
nenhuma significação, como o vosso desejo de dinheiro, a vossa ambição e busca
de preenchimento. A realidade tem de vir a vós e não poderá vir enquanto houver
a corrupção pelo coletivo. Eis porque a mente deve achar-se completamente só,
não influenciada, não contaminada e, portanto, livre do tempo, pois só então
pode manifestar-se o imensurável, o atemporal.
Krishnamurti – 28 de agosto de 1955 – Ojai (Califórnia)
U.S.A.
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